26.3.11

Traída Pelo Desejo


A vida é feita de escolhas, cada uma delas é um caminho, uma estrada que invariavelmente terminará num ponto, seja ele bom ou ruim, o destino final é imutável. Lá esta você, cansado, suado, exausto, olhando para sua escolha que deverá agora se tornar o começo de um novo caminho até o resultado final da próxima escolha. E por assim vai, ad infinitum  até o dia de sua morte. A  única coisa que não podemos escolher.

Enquanto isso, ando pelas ruas de Los Angeles com minha amiga de olhar sonhador e tagarela, Melody é seu nome. Seu tipo não é muito harmonioso, mas ela fez a escolha de sua vida baseada na escolha de seus pais e lá esta ela, como uma engenheira de som, em seus quase trintas anos, colhendo os frutos de seu nome, que muito provavelmente foi também escolhido a dedos.

Eu sou a Paloma, não sou nenhum artista famosa, nem tenho uma linha de perfumes. Mas eu cozinho bem, troco hospedagem na casa de meus amigos por deliciosas sopinhas na cama, saladas de macarrão, invencionices com produtos roubados das prateleiras de seus roomates e outros mimos calóricos. Tudo isso para não ficar num hostel, tomando o café insosso da manhã com uma multidão de adolescentes viajantes e emaconhados e estando a beira de um ataque de piolhos - eles começam no inverno e nascem no verão, no caso, no calor, quando volto ao meu país. Ainda bem que tenho escolha.

Primeiro meus pais escolheram jornalismo como minha profissão, depois eu escolhi ser cozinheira, gourmet,  para impressionar. Será  que se eu me chamasse Chablis, Muniere, Parmantier meu destino seria diferente? Eu estaria no topo do mundo, com minha doma bem passada, faca em riste, sodomizando os ouvidos  e os nervos de meus cozinheiros na linha de produção aos berros, rica e feliz, com meu nome bordado em rosa e dourado : Chef Apple. Não sei, isso já seria uma outra história.

Mas lá estamos nós, Paloma e Melody, andando pela noite procurando um restaurante para comermos, depois de um show sonolento e interminável,  o que ela me disse ser um "second dinner", não quis ser controversa e dizer que, depois de comer uma  fatia de pizza do tamanho de Manhattan eu não estava mais com fome. Mas isto não cabia a mim, Melody estava feliz pois queria me levar num ótimo restaurante e eu, mais uma vez, não tive escolha a não ser concordar. Afinal, gourmets não temem, não sofrem, não choram diante de um desafio como este. Eu devia mudar meu nome para Bel, de Belly.

Então, chegamos ao lugar. Um restaurante de ar charmoso e provinciano, com toalhas plásticas de temas frugais, flores de plástico pelo teto, meia luz ambiente - não me recordo bem dos detalhes, devido a enorme quantidade de vinho que eu tomei durante a longa jornada pelas várias paradas que fizemos na noite. Havia um bar central e pessoas rindo e falando alto, a la americana. Pizzas rolando da cozinha para o salão me dizia que estávamos novamente no ponto de partida. Olhei desolada para Melody, que estava ansiosa me contando que ali, a comida era great. Bom, se era great,  quais seriam as opções, decidida que eu estava de evitar outra rodada de pizzas estrombólicas de sabores duvidosos como frango com molho barbecue ou presunto com jalapeños. Sou paulista, tradicionalista e levemente enjoadinha.

Como uma boa anfitriã de nosso passeio,  Melody me entregou o  cardápio e sem titubear me disse que, já que quem entendia de comida ali era eu, esta era a oportunidade de impressioná-la já que ela sempre pedia o que a casa tinha como prato principal. Olhei para ela e completei a frase mentalmente, ah, as f*** pizzas. Você sabe, força do hábito, ela disse sorrindo.

Garçom, mais um vinho por favor. E uma coca, pra acompanhar Melody que estava bebendo água e eu não queria parecer que, talvez, eu fosse tão propensa a amar  assim  o álcool. Comecei a olhar para o cardápio de  letras miúdas e amarelas num fundo laranja, torcendo para que algo rapidamente se sobressaísse e eu me livrasse  de tamanha responsabilidade.  Ela colocou em minhas mãos o destino de nosso jantar, e ali, eu era o Deus da mesa e ela, a mortal faminta.

Saladas, ovos, pastas, frango, frango, carne, pasta, salada, pizza, pizza, pizza, pães, uma profusão de entradas do tamanho de um pirex de natal. Uma miscelânea tão confusa de opções que eu comecei a ficar exausta e tive que me render a segunda taça de vinho até que  Melody decidiu que sim, queria uma entrada e uma salada e... What else Paloma?  Paloma não queria nada! Como escolher aquilo que não desejo? Como salivar diante de tantas opções se tudo o que eu queria naquele momento era trocar meu vinho por uma gin tonica, correr pra casa e terminar aquela tortura? Eu já estava sucumbindo a dor que os grandes homens da nossa história devem ter sentido diante dessa pergunta: Now What, Master? Make a choice or die.

E então, entorpecida pela bebida, exausta pela busca que parecia interminável, encontrei o que me parecia ser uma opção entre a prancha e a guilhotina, um prato de Mussels and Frites, ou em termos mais simples, mexilhão ao molho branco com batatas fritas. Algo assim não teria erro, ela iria amar a escolha, tão diferente que ela nunca havia percebido este prato no cardápio, eu fingiria que havia comido mas na verdade discretamente apenas molhava a ponta da batata no molho - grosso, salgado, bruto-, distraidamente, engolia alguns mexilhões as pressas e voilá.  Outra taça de vinho, por favor. Missão mais que comprima, Captain.  A conta, por favor e lets go!

Não achem que a sua companhia era desagradável e todo o passeio insuportável. O que realmente me exauriu foi estar na berlinda, na margem, ser impulsionada entre não ter escolha como não poder desplugar o violão e roubar o microfone no show e ter que impressionar a mais que amável Melody com meus conhecimentos adquiridos por inúmeras viagens e sabores que eu já havia experimentado.

Voltando para casa, tropeço na beira da cama e me entrego ao profundo sono dos embriagados. Com a barriga pra cima sonho com enormes pizzas de frango e saduiches de bacon, chicken wings e guaca-moles. Acordo suada no meio da madrugada com a boca seca e sem conseguir respirar. No escuro, busco o meu sorine, busco água, passo a mão nos olhos e sinto tudo meio estranho. Sinto a barriga doer, sinto minha mão formigar, sinto meu peito chiar. Será que é agora? Será que estou a beira da morte? Cheguei ao fim de meus dias, de minhas escolhas, da minha estrada? Meu peito explode em ansiedade e levanto, ainda meio bêbada procurando as escadas e por fim o banheiro.

Os segundos que se passaram entre o ascender das luzes e minha imagem no espelho foram eternos. Aos poucos meu rosto foi se formando no reflexo enquanto meus olhos se acostumavam com a claridade, e eu vi. E eu me vi, mas não me reconheci. O lado direito de meu lábio parecia um clitóris gigante. Minhas bochechas doíam ao toque, minha testa e meu olho direito estavam tão inchado que eu podia ver a minha pele hiper-extendida. O que sobrou do meu outro olho foi uma fenda obscena cheia de muco. Eu era um mexilhão. Eu era o que eu comi. Eu era o resultado de minha escolha. O pesadelo era real.  Eu não era deus e sim um monstro deformado e ressaqueado.

Enquanto tentava respirar, tocava minha cara com cuidado, tentando entender que catso tinha acontecido comigo. E logo lembrei do mexilhão, do molho, do mexilhão, do vinho, do mexilhão... Flashes da noite se passaram por minha cabeça enquanto limpava meus olhos remelentos e abria a boca a fim de fazer mais alguns testes. Meu estômago revirava com gases e temi colapsar. E pensei que se eu fosse o mestre, meus seguidores estavam agora se rebelando contra mim. Logo eu, que amo viver, que amo comer e que nunca tive uma reação alérgica por comida. Salvo o dia que insisti em comer  um misto quente duvidoso na beira da estrada na Bahia.

Voltei para a cama me sentindo uma derrotada. Sentindo o peso das escolhas em minhas costas, ou melhor, em minha cara. Vivendo o que todo gourmet  teme. A criação contra o criador. A dor  mostrava a força do tapa do destino em meu rosto e eu não podia fazer nada. Deitei em minha cama esperando o sono voltar e desejando que no dia seguinte, aquilo não tivesse passado de uma bad trip momentânea. A lição estava dada: Fui traída pelo desejo, ou melhor pela falta dele. "Cuidado com o que deseja, pois ele pode se tornar realidade". Eu desejei encurtar o caminho da escolha com os mexilhões, e agora, mesmo que eu não quisesse, eu havia me tornado um deles.

Talvez eu devesse mudar de nome.









3 comentários:

Jesus Dias disse...

hilário a tua metamorfose amiga

DrooDroo disse...

Nem sei dizer como, mas as pessoas são diferente e ao mesmo tempo iguais, seja aqui ou no inferno, somos o que comemos, e mas escolhas as vezes viram boas historias....
mil beijos e estima de melhoras mexilhãozinha....

Anônimo disse...

I request a chance to redeem myself with a better restaurant choice!