3.8.09

CAP 01

No começo, tudo era a abstração do cheiro.

Cozinha não é lugar de criança. Sempre que nela eu entrava, uma grande curiosidade tomava conta de mim. Por cima da pia, uma tábua. Cebolas cortadas, alho, salsinha. O cheiro da comida, o cheiro da cozinheira, o cheiro da cândida que se desprendia da lavanderia e vinha direto se misturar com o ar quente e pesado que exalava da cozinha. No fogão, meus olhos alcançavam somente até a altura do corpo das panelas, e antes disso, muito antes, meus olhinhos vistavam só a grande porta do forno.

O que há dentro daquelas panelas? Posso ver? Não, diziam categoricamente, está muito quente. A panela de pressão representava o inferno daquele ambiente; todos os dias, em qualquer estação, aquele monstro apitava, soltava fumaça, ouvia dizer que na casa de alguém uma delas explodiu. Ouvia dizer que nelas se fazia feijão ou sopas. E o forno? Eu posso abrir? Não, claro que não! Posso cortar uma cenoura? Não e não, essa faca é grande. Logo me tocavam pra fora, pra sala, onde eu devia esperar pelo almoço, que logo eu comia de quatro, em baixo da mesa. Sou um cachorrinho, né, mãe?

Mas quando o dia acabava, num grande apartamento do jardins, onde vivia somente eu e minha mãe, fazendo companhia uma a outra, conversávamos sobre muitos assuntos pondo o papo em dia, meus primeiros happy hours. Para ela, uma taça de vinho, para mim uma mistura leve de vinho com água e açúcar. Num pratinho, fatias de algum salame bem ardido, cheio de pimentas, um pão para acompanhar nossas conversas. Com minha mãe aprendi a conversar muito, a falar do amor, da vida. Ela foi minha primeira amiga e também quem me ensinou a gostar de coisas como salames, cebolas e muito alho.

Minha primeira aventura na cozinha com certeza foi com ela, me lembro vagamente da cena. Era numa dessas noites em casa, fizemos torradas de alho. Quem picou o alho, claro, foi minha mãe e logo depois, com um garfo em punho, esmaguei aqueles pedaços de alho na manteiga, que ia derretendo, virando um creme e se misturando. O cheiro daquilo até hoje me encanta. Não se parece com mais nenhum pão de alho, porque lá havia o mistério. Observar as mãos precisas cortando o pão, posso passar a pasta? Pode. Em cada torradinha um pouco de manteiga com alho, me sentia grande, me sentia adulta e séria, com cuidado untado os pães enquanto o forno esquentava. Ato contínuo, o grande momento era abrir o forno quente, o bafo esquentava o meu rosto e eu me perguntava quando, finalmente, passaria para o próximo estágio e enfim tomaria rédeas daquele ato.

Alguns anos ainda se passariam até que eu entrasse numa cozinha como cozinheira. Enquanto esse dia não chegava, minha boca se enchia com delicias esquisitas pra qualquer criança da minha idade.
***

Posso dizer que sempre comi de tudo, dizem que o nosso paladar é treinado na infância. Na minha, não conheci preconceitos, e sempre fui motivada a experimentar sabores novos. Comia coisas que hoje em dia não me são nenhum pouco apelativas como cebola crua com sal, que muitas vezes eu saboreava vestida com uma fantasia do batman, e sempre com uma garrafa de água ao lado.

Na minha lancheira da escola, um sanduíche de carne louca bem temperada fazia par com um ovo cozido, um pouco de suco de uva ou nescau na garrafa térmica do garfield. As outras crianças torciam o nariz. Para elas, gostoso era salgadinho, pão com presunto e queijo, bolachas recheadas. Pelo menos eu não precisava dividir o meu lanche com ninguém.

Um tempo depois minha mãe se mudou para a casa do namorado chamado A, ele tinha o Bar Garagem, um bar tosco, na rua dos pinheiros, onde os amigos se juntavam para beber cerveja e jogar xadrez. Enquanto ele trabalhava, minha mãe em casa preparava pratos para serem vendidos no balcão: Bracciola, chutney, carne louca.

O lanche que eu coroei como sendo o mais gostoso era o de peito de peru com rúcula e mango chutney preparado em casa. A mistura agridoce do chutney com o adocicado do peito de peru me trazia uma sensação diferente. Eu tentava descobrir o que era o que naquele molho. Da onde vinha o sabor picante, a onde se encaixava o sal? Eu ficava sentada, balançando as pernas no balcão, comendo aos poucos aquele sanduíche pelas bordas, de quando em quando lambendo o molho de manga que saia pelos cantos sempre que eu dava uma grande mordida. Aquilo era sublime.

É interessante perceber como os sabores se fixam em nossas memórias e, sempre que os revisitamos, ficamos cara a cara com o nosso passado. O mango chutney foi um desses sabores que ficaram guardados dentro de mim. Um dia, resolvi fazer em casa, nunca tinha lido uma receita de chutney. Procurei num livro uma receita qualquer, porém aquilo não se parecia em nada com o sabor que eu queria. Sem pressa, fui criando a minha receita, a cada tempero colocado na panela, era como se eu desce um passo no sentido da minha infância novamente. Consegui recriar, talvez não fielmente, o sabor que eu me lembrava, nunca ninguém vai saber. Mas dentro de mim, toda vez que hoje saboreio um mango chutney feito por mim, eu fecho os olhos e me vejo de novo saindo da van da escola, subindo os degraus do bar para mais uma partida de xadrez com A que, inevitavelmente, perdia no jogo. Puxa Paloma, você está craque no xadrez. Eu ria e me regozijava.